escritor do mês: José Saramago

Poesia

"Se"
Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem.

 Sophia de Mello Breyner Andresen


POEMA DE HELENA LANARI 

            Gosto de ouvir o português do Brasil
            Onde as palavras recuperam sua substância total
            Concretas como frutos nítidas como pássaros
            Gosto de ouvir a palavra com suas sílabas todas
            Sem perder sequer um quinto de vogal

            Quando Helena Lanari dizia “o coqueiro”
            O coqueiro ficava muito mais vegetal


Vossos olhos, Senhora, que competem
  
Vossos olhos, Senhora, que competem 
Com o Sol em beleza e claridade, 
Enchem os meus de tal suavidade, 
Que em lágrimas de vê-los se derretem. 

Meus sentidos prostrados se submetem 
Assim cegos a tanta majestade; 
E da triste prisão, da escuridade, 
Cheios de medo, por fugir remetem. 

 Porém se então me vedes por acerto, 
 Esse áspero desprezo com que olhais 
 Me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh gentil cura! Oh estranho desconcerto! 
Que dareis c' um favor que vós não dais, 
Quando com um desprezo me dais vida?

Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
   



Para Ti 

 Foi para ti 
 que desfolhei a chuva 
 para ti soltei o perfume da terra 
 toquei no nada 
 e para ti foi tudo 

 Para ti criei todas as palavras 
 e todas me faltaram 
 no minuto em que talhei 
 o sabor do sempre 

 Para ti dei voz  às minhas mãos 
 abri os gomos do tempo 
 assaltei o mundo 
 e pensei que tudo estava em nós 
 nesse doce engano 
 de tudo sermos donos 
 sem nada termos 
 simplesmente porque era de noite 
 e não dormíamos 
 eu descia em teu peito 
 para me procurar 
 e antes que a escuridão 
 nos cingisse a cintura 
 ficávamos nos olhos 
 vivendo de um só 
amando de uma só vida 

 Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"






O poema me levará no tempo

"O poema me levará no tempo
 Quando eu já não for
 a habitação do tempo.
 E passarei sozinha
 Entre as mãos de quem lê
 O poema alguém o dirá
 Às searas" 

 Sophia de Mello Breyner Andresen - Livro Sexto (1962)








ESCRITOR DO MÊS

.

JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ SARAMAGO

"A meio deste mês de Outubro será publicado, em Portugal e no Brasil, Claraboia, o romance que José Saramago escreveu antes de entrar num tempo de silêncio que durou quase 20 anos, e que, de alguma maneira, teve a sua origem na falta de respeito com que o autor se sentiu tratado. José Saramago, com 30 anos recém cumpridos, entregou o que supunha vir a ser o seu segundo romance a um amigo, com relações editoriais, que se encarregou de levá-lo a uma editora portuguesa. Que nunca o editou, decisão que Saramago poderia aceitar, mas nunca daquela forma, durante meses e anos não lhe responderam e, para além disso, não devolveram o original. Foi assim até quarenta anos depois, quando recebeu a insólita notícia de que “numa mudança de instalações se havia encontrado um manuscrito e que estariam muito interessados em publicar”. Saramago agradeceu a oferta mas, disse, já não é o momento, já passaram muitos anos. E não quis ver publicada Claraboiaem vida, ainda que tenha deixado escrito que os que lhe sobrevivessem poderia fazer o que pensassem conveniente.

E o conveniente é conhecer o primeiro Saramago, o que já era um grande escritor ainda que os meios de comunicação não falassem dele e as editoras recusassem os seus originais. A partir de Outubro, todos os leitores em português terão a possibilidade de desfrutar deste presente, desta pequena e madura jóia. Outros idiomas terão de esperar, ainda que talvez na primavera os leitores em castelhano, catalão e italiano, possam ter oportunidade de ter este livro de Saramago nas mãos, para aumentar a sua bagagem, para disfrutar com a grande literatura." josesaramago.org

Excerto
«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
- Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
- Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
- Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
- Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.»