escritor do mês: José Saramago

segunda-feira, 7 de março de 2011

Auto-retrato de turma

Se já é difícil fazermos um auto-retrato de nós próprios, olharmos para dentro de nós, descobrirmos e aceitarmos todos os nossos defeitos e virtudes, fazer um auto-retrato de um conjunto de pessoas com quem passamos cerca de oito horas por dia e cinco dias por semana é ainda mais complicado. A dificuldade reside no facto de que se eu me conheço a mim mesma melhor do que toda a gente, (até mesmo melhor do que a minha própria mãe) e se mesmo assim, após 15 anos de vida, não me conheço completamente, como é que vou ser capaz de fazer um auto-retrato de um conjunto de 27 pessoas, muitas das quais conheço há meses? A resposta é simples: não sou capaz, e por isso mesmo é que o que se segue será uma tentativa de auto-retrato e não um auto-retrato na verdadeira acepção da palavra.
Talvez possa começar por comparar a nossa turma a música… cada pessoa é como uma nota que se for tocada sozinha é apenas mais um som. É claro que, se todas as notas forem tocadas ao mesmo tempo, o som que irão originar não será muito aprazível, (muito antes pelo contrário…) mas se as soubermos organizar, se juntarmos três notas aqui, se organizarmos quatro notas acolá, a pouco e pouco, as notas que eram apenas sons individuais, desprovidos de graça, vão começar a formar uma melodia, uma bela melodia.
É isso que nós somos, uma melodia. Por vezes calma e suave, por vezes agitada, outras vezes brincalhona. Uma sucessão de notas coerente, lógica e bem estruturada mas da qual às vezes nos cansamos, porque o que é bem organizado, bonitinho e certinho também aborrece. É aí que, do nada, começamos a improvisar, a criar e recriar novas melodias. Porque a música não é algo estático, tal como nós também não o somos. Tão depressa podemos ser uma sonata de Mozart ou um estudo de Clementy, um tango ou uma peça de jazz.
É isso que nós somos, uma melodia. Uma melodia certinha, na qual a dada altura, existe um momento de inspiração espontânea, que a transforma num riso, numa gargalhada, numa forma de transmitir emoções, e que depois volta ser a mesma melodia estruturada e organizada.
O 10ºC é música.
 Maria de Albuquerque




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ESCRITOR DO MÊS

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JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ SARAMAGO

"A meio deste mês de Outubro será publicado, em Portugal e no Brasil, Claraboia, o romance que José Saramago escreveu antes de entrar num tempo de silêncio que durou quase 20 anos, e que, de alguma maneira, teve a sua origem na falta de respeito com que o autor se sentiu tratado. José Saramago, com 30 anos recém cumpridos, entregou o que supunha vir a ser o seu segundo romance a um amigo, com relações editoriais, que se encarregou de levá-lo a uma editora portuguesa. Que nunca o editou, decisão que Saramago poderia aceitar, mas nunca daquela forma, durante meses e anos não lhe responderam e, para além disso, não devolveram o original. Foi assim até quarenta anos depois, quando recebeu a insólita notícia de que “numa mudança de instalações se havia encontrado um manuscrito e que estariam muito interessados em publicar”. Saramago agradeceu a oferta mas, disse, já não é o momento, já passaram muitos anos. E não quis ver publicada Claraboiaem vida, ainda que tenha deixado escrito que os que lhe sobrevivessem poderia fazer o que pensassem conveniente.

E o conveniente é conhecer o primeiro Saramago, o que já era um grande escritor ainda que os meios de comunicação não falassem dele e as editoras recusassem os seus originais. A partir de Outubro, todos os leitores em português terão a possibilidade de desfrutar deste presente, desta pequena e madura jóia. Outros idiomas terão de esperar, ainda que talvez na primavera os leitores em castelhano, catalão e italiano, possam ter oportunidade de ter este livro de Saramago nas mãos, para aumentar a sua bagagem, para disfrutar com a grande literatura." josesaramago.org

Excerto
«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
- Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
- Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
- Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
- Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.»