escritor do mês: José Saramago

domingo, 16 de janeiro de 2011

memórias :)



O livro que li antes de saber ler.

Vejo a minha mãe abrir a porta de casa, cheia de sacos, tinha acabado de chegar de uma viagem à Rússia.
Entrega-me um dos sacos e eu abro-o rapidamente e encontro dentro, não chocolates como o que eu achava que seria mas um livro. Ainda olho para ela e a minha expressão era tudo menos satisfação, não se teria ela enganado? A cara da minha mãe era de desapontamento por isso conformei-me e agradeci. Só à noite é que peguei no livro e o folheei, tinha imagens a três dimensões e criei logo uma história. É engraçado a quantidade de histórias que se pode criar com as mesmas imagens e foi isso que eu fiz ao longo desses dias.
No fim-de-semana, enchi-me de coragem e pedi para que me lessem a história e descobri a verdadeira história. A voz da minha mãe ressoava na escuridão do quarto, foi o meu primeiro contacto físico com a leitura. As palavras iam-se transformando em sons tendo o poder de evocar reis e rainhas.
No entanto apesar das minhas histórias se distanciarem da verdadeira história, permitiu-me aprender que para o ser humano tudo é possível basta sonhar, até ler um livro sem saber ler.






Morreste...


Quando eu nasci, já lá estavas. Não eras muito mais velho, mas velho o suficiente para confiar em ti. Sempre que podíamos estávamos juntos e nunca havia tempos mortos. Eu ia sorrateiramente buscar os teus biscoitos. Abanava a caixa... e era imediato e automático: reagias ao chocalhar dos biscoitos da mesma maneira que, quando eu dizia à minha irmã que havia batatas fritas do McDonald’s  e ela também vinha a correr. Aí, eu levantava a caixa o mais alto que conseguia só para te ver saltar alegremente à minha volta, à espera dos biscoitos. Ou quando aos sábados de manhã, sem razão aparente, saltavas do sofá e davas uma corrida até ao quarto dos pais e voltavas com uma das pantufas do meu pai na boca. Pelo caminho só se ouvia o murmurar das tuas patas a galgar o soalho do corredor. Depois eu agarrava na outra ponta da pantufa e era uma luta renhida para ver quem ficava com o troféu. (Talvez seja essa a razão por que te chamavas Pantufa...)
            Anos depois, num dia cinzento de Abril, durante o intervalo para a última aula da tarde, a minha mãe telefonou-me. “O Pantufa morreu”. Tão rapidamente como ele respondia ao barulho que eu fazia com a caixa dos biscoitos, os meus olhos esvaíram-se em lágrimas. Era o meu primeiro contacto com a morte.
Fui ao veterinário de São José vê-lo pela última vez. Frio, inerte, sem expressão. Morto, era como tu estavas. Nunca tinha chorado tanto. Nunca voltei a chorar tanto. Mas é assim a vida. Como disse Saramago, “Tu estavas e agora não estás. Isso é a morte”
Francisco Soutinho





Tenho quinze anos, logo não muita coisa para me lembrar, tenho pouca experiência da vida, mas existe um momento, um momento marcante, inesquecível e muito doloroso.

Apenas me recordo de poucos minutos, tinha o melhor apoio do mundo, mesmo assim doía, pois faltava a pessoa que me dava mais conforto, a minha mãe e era mesmo dela a quem, naquele momento , dizíamos o último ‘adeus’. Ainda hoje sinto um aperto e ainda me apetece chorar, depois penso que não vale a pena, pois sinto-a a aconchegar-me, eu sei que é estranho, inexplicável e incompreensível, mas nada pode mudar a presença que sinto. Naquele dia estava com uma t-shirt com um punho que representava a força, a garra e a energia da minha mãe, ela nunca desistiu, sempre lutou, foi uma guerreira. Mas a doença sobrepôs-se à sua força e ela não resistiu, e desapareceu, desapareceu, mas com glória, com o seu ‘vestido’ de lutadora o qual nunca despiu, nem na hora da sua morte. Ela partiu, é verdade, mas permanecerá sempre na minha cabeça e no meu coração, na minha memória, como uma imagem alegre, vencedora e guerreira.
            O que posso dizer é que nunca esquecerei aquele funeral, mas principalmente aquela Mulher, o ‘m’ maiúsculo não é um erro, é uma homenagem merecida, por tudo o que aquela Mulher fez na vida e pela maneira como tratou os seus filhos, estes que garantidamente nunca a esquecerão.
Guilherme



Acordei com a minha mãe a chamar por mim, era um dia diferente.

Era o último Outubro antes da chegada do euro a Portugal, tinha cinco anos e preparava-me para sair de casa, enquanto ouvia a minha mãe, despachem-se, e o meu pai respondia: -Tem calma, querida. Acabámos por sair atrasados. Quando chegámos à Baixa de Coimbra na Rua Visconde da Luz onde se fazia anualmente a Feira da Castanha numa manhã fria e azul, havia alguma movimentação e rapidamente abrimos a nossa banca para vender castanhas frescas, entretanto o ambiente tornou-se mais movimentado e chegou o meu esperado e desejado, “Homem das castanhas assadas”. Rapidamente fui pedir 100 escudos à minha mãe e depois, sem ela ver, pedi outro tanto ao meu pai e, realizado, desci à Baixa. As pessoas pareciam felizes, carregadas com sacos de castanhas, o cheiro que mais se sentia além da castanha era o da jeropiga, intenso, mas também o odor doce dos rebuçados de mel e finalmente cheguei junto do homem das castanhas e comprei um grande cartuxo, ao qual, sorrindo, ele acrescentou mais um punhado, e assim voltei contente escadas acima, onde a minha mãe me aguardava, vendendo. Na banca pus as minhas castanhas de lado e enquanto a minha mãe ia servindo os clientes eu ia imitando-a, pensando que estava a ajudar, até que ouvi um pregoeiro que anunciava as suas castanhas assadas e fui ter com ele e imitei-o. Lembro-me logo de seguida que o meu pai  me agarrou e me  pôs às cavalitas e levou-me para o carro, já passava das seis horas e era tempo de ir para casa.
Foi um dia especial, sem dúvida, em que me diverti e senti feliz na companhia dos meus pais e de um bom ambiente.
Tiago Costa



     Lembro com saudade eterna o dia em que conheci a minha prima mais nova.
     Eu tinha cerca de seis anos quando me passaram para as mãos um ser frágil. Os seus olhos miravam-me curiosos do mundo em redor, o seu minúsculo narizinho arrebitado cheirava pela primeira vez a sua casa. Estávamos na casa da minha avó materna onde vivia também a minha tia, era uma casa grande com um portão verde que chiava sempre que o abríamos e eu ria-me quando ouvia esse som. Cantava uma canção, enquanto embalava a minha prima e sentia-me feliz, era como se estivesse a brincar com uma boneca. Mas, de repente, um som abalou a minha felicidade, vinha das profundezas dos pulmões da minha prima que começou a chorar compulsivamente.
A minha tia assustada, pegou no seu bebé e lançou-me um olhar furioso. E eu vi-me sem a minha boneca.
    Percebi então a complexidade de gerar uma vida humana e querer protegê-la do mundo.
Nadejda Licova





A Máquina da Vida

Tudo começou há aproximadamente cinco ou seis anos atrás. Dirigi-me à FNAC para conseguir obter finalmente um objecto meu, só meu. Fazia falta lá por casa uma máquina fotográfica digital, e eu queria uma, portanto decidi comprá-la. A não muito potente Sony qualquer coisa – números 77 suponho. Estes nomes são piores que matrículas. Consegui obtê-la com o meu dinheiro, as minhas poupanças, tudo fruto da minha responsabilidade. Considerei esta compra como um passo na minha vida, um passo de grandeza. A minha primeira grande responsabilidade era agradável, nada mau. Nada do que eu estava à espera.
Nos primeiros tempos não lhe dei grande importância. Usava-a, claro, mas não era algo pela qual ’morresse’. Não era até eu amadurecer, conhecer novas coisas, novas pessoas, uma nova vida e um novo mundo – a realidade.
 Saí eu da carapaça da minha infância e entrei no novo mundo. Meu Deus, havia tanto para descobrir! E eu que não queria deixar escapar nada, queria sim captar tudo quanto podia, portanto comecei a fazer-me acompanhar da minha máquina. Pensava, “já perdi tantas coisas, agora vai ser viver ao máximo” e fixava as imagens.
Comecei a explorar a máquina, a fotografia e rapidamente ganhei um grande fascínio pela acção de captar momentos, emoções, paisagens, coisas marcantes ou simplesmente algo engraçado e simples. Ganhei uma paixão pela fotografia.
Por vezes, quando não quero transmitir o que sinto, agarro-me a coisas que me preencham quando estou muito bem ou mal. Como já me conheço bem o suficiente, sei que quando estou mal necessito de música e quando estou feliz gosto de estar a tirar fotografias e a captar todos os sorrisos, incluindo o meu. Cada vez que olho para a câmara lembro-me dos momentos mais felizes que tive. Esta máquina é um objecto de grande valor e de estima para mim.
Um dia quero poder acordar, agarrar na minha bengala, pentear o cabelo grisalho e pedir aos meus netos que liguem o computador para eu lhes mostrar todos os momentos que mais me marcaram. Toda a infância, a juventude, a idade adulta, a entrada na velhice… “recordar é viver” e quando um dia a memória me falhar posso sempre recorrer a estas imagens que são permanentes. Considero este objecto “a máquina da vida”, da minha vida.
Mariana Oliveira






Estamos sempre seguros


Lembro-me de ter começado a almoçar num dia quente de Verão, era um dia com algumas nuvens de incêndios que deflagravam ali perto. Enquanto almoçávamos íamos ouvindo o noticiário que falava como sempre de política. De repente, o locutor parou de falar, para ouvir notícias de outro jornalista que estava ali perto. Quando voltou chegou com uma notícia chocante: INCÊNDIO DEFLAGRA JUNTO A COIMBRA. A princípio não nos alarmámos, pois era uma coisa normal naquela altura do ano, por isso não ligámos e continuámos a nossa vida normal.
Na parte da tarde fomos para casa do meu padrinho que ficava em Condeixa. Ficámos lá até á noite. Durante a tarde bem que tínhamos visto uma coluna espessa de fumo que subia no céu, mas não nos alarmámos pois pensámos que seria um incêndio para os lados de São Miguel de Poiares. Foi um grande erro de cálculo que cometemos.
À noite quando estávamos a chegar a Coimbra, apercebemo-nos do perigo que a cidade corria. A cidade estava completamente rodeada de chamas de 10 metros de altura. Ao chegarmos a casa dirigimo-nos à varanda e logo vimos mais de duas centenas de bombeiros que se tinham unido para combater o fogo. Aí percebi, há homens que dão as suas vidas para salvar as nossas: os Bombeiros.
A partir desse dia percebi. Estamos sempre seguros.                     
 Filipe Sousa

A despedida.

Estava um dia “cinco estrelas”, muito sol e muito calor. Estavamos em pleno mês de Agosto.
Tinha acabado de chegar de férias com os meus pais e com o meu irmão. Era véspera do meu aniversário, eu estava muito feliz e ansiosa, quando a minha mãe chega ao pé de mim com uma expressão muito triste e com os olhos cheios de água e me diz que a minha bisavó estava muito mal. Eu agarrei-me a ela com muita força e pedi-lhe que me levasse para a ver.
A minha bisa estava em casa da minha tia.
Quando entrei, senti um silêncio constrangedor, fui directa ao quarto onde ela se encontrava e vi a minha avó sentada ao pé dela muito triste a dar-lhe água para não desidratar.
O olhar dela era profundo, a cara pálida e com uma respiração muito acelerada. Peguei-lhe na mão e murmurei-lhe baixinho ao ouvido, que estava ali com ela e para ela ter muita força, mas não teve nenhuma reacção, até que sugeriu um sorriso e a sua cabeça começou a cair devagarinho sob a almofada e os olhos começaram a não ter força para se  fecharem. Nesse momento a minha mãe e a minha avó começaram a chorar desesperadamente.
Foi aí que senti que a minha bisa tinha partido para uma viagem sem volta.
 Inês


"Sê tu a palavra,


 Branca rosa brava."


  Eugénio de Andrade

            
        Lembro-me deste episódio da minha vida como se fosse ontem.

        Tudo se passou no ano de 2000, quando ainda tinha cinco anos e chegara a hora de entrar para o jardim de infância. O meu pai ia-me levar e lá ia eu todo contente. Mas todos os dias, mal chegava, não tolerava a separação, só queria ficar com o meu pai e não queria que ele se fosse embora. E chorava, chorava, chorava. Até que lá me convenciam e, por fim, lá ia o meu pai já atrasado para o trabalho e eu para o último andar do prédio com cara de “frete”.
 Distraído, passava o dia todo contente a fazer desenhos e a brincar com plasticina.
Todos os dias a mesma cena, lá ia eu com os bolsos cheios de bonecos da Playmobil, chorava, brincava, ia à piscina e voltava para casa. E foi no meio de todo este episódio que conheci o meu amigo e colega Francisco Soutinho. Toda esta vivência ajudou-me a ser quem sou e a saber quem sou.
                Agora continuo a ser o mesmo “minorca”, lento, tímido e atrevida personagem que sou, passados dez anos.
Paulo Carvalho




Podia escrever sobre milhares de memórias. Sobre aqueles que já partiram e os que aqui continuam . Sobre aqueles que me ensinaram a viver e sobre aqueles que me deitaram a baixo. Os que me apoiam e os que estão sempre contra mim. Sobre os meus irmãos ou até mesmo os meus pais. Mas escolhi-te a ti que partiste. Não porque a separação, a morte assustadora e arrepiante, te tenha levado, mas porque tu quiseste.
2 de Junho de 2010. Era suposto ter sido um dos melhores dias do ano, mas não… ainda hoje  questiono o porquê de te teres ido embora. Lembro-me de chegar à escola e de tu estares à minha espera junto ao portão. Abraçaste-me como se não houvesse amanhã e disseste “Parabéns pequenina linda do meu coração”. Fizeste questão de dizer a toda a gente que eu fazia anos, de quase obrigares todos a darem-me os parabéns. Durante dez minutos aquilo que mais ouvi foi “Olha, olha, ela faz anos. Vem dar-lhe os parabéns.”
 Depois da campainha soar tive que te obrigar a ir para a aula, dizer que ficava à tua espera e que só me ia embora quando tu saísses. E assim, foi. Esperei por ti e quando saíste vinhas triste, com cara de caso. Instintivamente perguntei-te “O que é que se passa?”. Mais uma vez enfiaste-te no teu silêncio assustador e sufocante, deste-me a mão e passado bastante tempo disseste, “Vou-me embora. Mais uma vez, feliz aniversário minha pequenina. Lembra-te sempre que te adoro muito e que és a pessoa mais corajosa e forte que eu conheço. Continua assim e nunca baixes os braços”, nisto deste-me um abraço bem forte e sussurraste ao meu ouvido ,“Adoro-te irmãzinha”. Não tive reacção possível, pois assim que acabaste de falar foste-te embora, sem me dar tempo sequer de dizer, “Adoro-te meu gigante”.
Hoje, recordo este dia na minha memória. Recordo-o com saudade, com bastante ansiedade e tristeza. Guardo-o sempre com o desejo de que um dia voltes, porque um dia, prometeste-me que ias sempre acompanhar-me e eu sei que, quando prometes cumpres.
Ilda 




"Uma das mais recuadas imagens dos meus dias é uma mulher a cantar.
 Com a sua voz antiquíssima e branca, aquela mulher, à distância de mais de cinquenta anos, continua a embalar-me o coração ."

 Eugénio de Andrade




Uma recordação diferente

Lembro-me de num daqueles dias tristes de chuva torrencial no Verão, que para ser diferente ou contrariar o resto do mundo, eu sempre adorei. Estávamos as três: eu, a minha mãe e a minha irmã sem nada para fazer, fechadas em casa e resolvemos ir ver fotografias de quando eu e a minha irmã éramos mais novas. Sempre foi um pequeno ritual de que todas gostávamos por ser tão divertido.
Havia uma fotografia em que eu estava com uma borboleta pintada na cara, outra em que vestia um fato de abelha, outra em que estava a fazer de bicho-da-seda para um teatro da escola, outra que estava no oceanário. Estava sempre a fazer qualquer coisa diferente e especial que tinha merecido ficar recordada para sempre numa fotografia.
Mas havia uma que sempre foi a minha preferida porque não tinha nada. Estava eu, a sorrir, mais a minha irmã, num sítio qualquer, numa altura qualquer, a fazer uma coisa qualquer, mas a sorrir. Se for ver fotografias mais recentes, sei o que estava a fazer, com quem estava e onde estava, em todas. Não há uma única que não me lembre.
E estas são as razões que me levam a gostar tanto desta fotografia e a achá-la tão especial, porque me recorda da capacidade que as crianças têm (e que parece ir-se perdendo à medida que crescemos) de estarem felizes por nada, e puderem faze-lo sem ninguém achar que são loucas. Esta é uma parte da infância da qual eu sinto muita falta, mas acredito que este sentimento de felicidade natural nunca se perde completamente, e, se em vez de passarmos a vida a temer o que os outros possam pensar de nós e nos dedicarmos completamente a este sentimento, alimentando-o a cada dia que passa, ele vai sempre continuar a crescer.
Beatriz Carvalho



Página de diário:

Vila Pouca do Campo, 21 de Março de 1997
A casa da avó estava vazia.
De tão grande e imponente que é, torna-se assustadora quando dela se apodera o silêncio das pessoas e o barulho atarefado das plantas do jardim. As pessoas dão-lhe alegria e vida, mas hoje estava sozinha e nada parecia igual. Entrei pelo portão da frente, rangia como o avô resmunga quando se levanta do sofá. Quando o fechei, tinha as mãos com ferrugem que denunciava os anos largos que já tem. Fui entrando… no terraço, antes da porta, ainda conseguia sentir o vibrar do Sol de fim de tarde, quando as cores e a luz estão em plena harmonia e pousam com doçura. Via os bancos onde a avó se costumava sentar, e quase que a imaginei a assar as sardinhas nas tardes de Verão, mas rapidamente me abstraí de tudo e olhei para o melhor de todo aquele espaço: a laranjeira!
Desde pequena que olho para aquela árvore grossa, robusta e quase que faz cócegas às nuvens, é por isso que elas se mexem, disse sempre o meu avô. Acho mesmo que ele tem razão. Quem mais poderia fazer as nuvens tremer? Foi mais forte do que eu e decidi trepar pelo mistério daquela árvore, pelas famílias de ramos e folhas que formavam um painel verde claro, o sabor das laranjas, inspirar aquele ar puro, uma delícia!
 Agarrei um tijolo, pus-me em cima dele e comecei a subir. Tentei apoiar as sandálias o melhor que conseguia; não foi muito fácil, mas fui subindo. À medida que trepava ia encontrando cada vez mais vida e animação e, de repente, já não me sentia tão sozinha. Havia lagartas que recortavam as folhas e formigas que corriam de um lado para o outro da casca escura e áspera, passando e ultrapassando todos os obstáculos do caminho; gostava de ser como elas, quando fosse grande.
Estava tão concentrada naqueles pequenos acontecimentos, que não subi até às últimas folhas. A certa altura, ouvi alguém falar – era a avó. Tinha chegado da padaria e não parecia feliz, exigiu que eu descesse de imediato. Desci com uma laranja na mão, e ela acabou por sorrir, o sorriso doce e cansado, tão característico dela. Não cheguei a fazer cócegas nas nuvens, e elas fluíam e passavam, alheias às minhas mãos…  
Carolina Maurício 


Coimbra, 27 de Novembro de 2010

            
Faz hoje três anos que lhe disse adeus. Faz hoje três anos que o vi sair com o seu casaco verde habitual, a boina aos quadrados e o sorriso com o qual acolhia todas as pessoas, o sorriso calmante e traquina do meu avô.
            E ao dizer-lhe adeus recebi uma resposta que me fez mais tarde ficar a pensar nesta despedida. Ele disse com a sua voz alegre e cansada que não se dizia adeus, mas sim até logo.
            Quando mais tarde, nesse dia, recebi a notícia de que ele tinha morrido, a única coisa que me percorria o pensamento era a imagem de ele a sair de casa e as suas últimas palavras a ecoarem nos meus ouvidos, como se de um truque psíquico se tratasse.
            Fiquei em estado de choque durante um período de tempo, que infelizmente não me trouxe de volta o meu avô, e desabei num pranto que nunca esquecerei e que reconheço como um dos momentos mais tristes da minha vida.
            Mais tarde, a minha mãe disse-me que o sonho do meu avô era poder ver-me entrar na faculdade e, a partir desse momento, eu prometi a mim mesmo que ia ser uma meta à qual chegaria independentemente dos factores externos.
            Faz hoje três anos, três longos anos em que eu me arrependo de ter dito adeus.
Alexandre Loureiro





5 de Janeiro de 2011

Eu passeio muito, e todos os dias vejo coisas diferentes.
Hoje estava a fazer o meu passeio de rotina e comecei a observar bem as pessoas. Enquanto eu andava, com os meus phones nos ouvidos, pensava no que me aconteceu, no que me está a acontecer e no que me poderá acontecer. Penso no que sofri, no que sofro e no que poderei sofrer...
Por vezes pensamos que os nossos problemas são os piores, e que sofremos mais do que qualquer outra pessoa, mas não! Coisas como estas que me acontecem, aposto que também aconteceram a outros. Passeio e vejo as pessoas...tantas caras diferentes, tantas expressões diferentes... Não há uma pessoa igual! Vemos umas muito simpáticas, outras sorridentes, outras tristes... Tanta variedade de sentimentos numa simples rua. Mas por detrás dessas pessoas simpáticas e dos seus sorrisos...existem as facetas de ''pessoas que sofreram''. Todas as pessoas que lá estavam sofreram ou estavam naquele momento a sofrer...mesmo que às vezes não o tenham transparecido. Por isso, nem o meu, nem o teu problema são os piores de todos. São apenas problemas, sem grau de qualificação. Umas pessoas reagem de uma maneira e outras doutra. Uns choram como se não houvesse amanhã, ficam quietos e paralisados, como se o mundo tivesse acabado, e outros engolem o choro, sorriem e seguem em frente, com a cabeça erguida e orgulhosos do que fizeram. Mesmo que agora não vejas, tudo tem solução. Só tens de saber esperar, e dar tempo ao tempo. As coisas acontecem quando têm de acontecer.
 Posso dizer que eu sou daquelas pessoas que chora como se não houvesse amanhã quando o problema me deixa devastada, mas quando acordo para a realidade, saio à rua, engulo o choro, sorrio e sigo em frente de cabeça erguida.
Seria bom dizermos que não nos arrependemos de algumas coisas que fizemos. Seria bom dizermos que lutamos e que nos orgulhamos do que fizemos. Mas muitas vezes é mentira. Arrependemo-nos sempre de algo que fizemos ou dissemos...


Ilda Martins 

Coimbra, 19 de Maio de 2010,

                Hoje acordei cedo, mas não foi para ir à escola, foi para ter uma das melhores visitas de estudo da minha vida. Organizada pelo Conservatório de Música de Coimbra, no âmbito das disciplinas de Canto e de História da Música, fomos ao Museu da Música e ao Teatro São Carlos, em Lisboa.
                Por volta das oito e meia da manhã cheguei ao conservatório e aquela rua para onde está virada a entrada da Escola Secundária D. Dinis estava intransitável!
 Que chusma tão grande para uma visita de estudo!
 O espaço que não era ocupado pelas dezenas de pessoas cá fora, era ocupado por cinco autocarros que nos iam levar a Lisboa e pelos carros dos pais de cada um dos alunos, que estacionavam de qualquer maneira para irem procurar os professores para assegurarem que as suas crianças estavam em boas mãos. Fez-me imediatamente lembrar a reportagem que mostrava os milhares de fãs do Toni Carreira a desembarcarem dos seus autocarros a caminho do Pavilhão Atlântico, que vi na televisão há umas semanas atrás. As únicas diferenças eram que, quem ia nos autocarros não eram senhoras pouco jovens que fazem questão de ver o programa “SIC 10horas” e o “Você Na TV”, com a Júlia Pinheiro, pois esta viagem ia ter um fim muito mais pedagógico, divertido e menos pimba do que um concerto do Toni.
           Com alguma dificuldade encontrei o meu autocarro e juntei-me ao meu grupinho. Em menos de nada estávamos em Lisboa, mas onde em Lisboa? Isso é que eu não sei...
                Num certo ponto da viagem os autocarros devem-se ter separado, porque quando saí, não ouvi, nem ao longe, o horrível chinfrim que fazem as criancinhas que iam num dos outros autocarros. Pelos vistos tínhamos sido divididos em grupos e o meu grupo ia agora visitar o Museu da Música. Dirigímo-nos a uma estação de metro e interrogo-me: “Porquê metro? Não era mais simples, se o autocarro nos tivesse deixado à entrada do museu? Desço as pálidas escadas de cimento e à minha esquerda captam-me a atenção duas montras com pequenas harpas antiquíssimas e entre as montras uma porta com o nome do estabelecimento por cima. “Museu da Música”, leio eu. Quem diria que depois de uma feia e corriqueira entrada para o metro se encontrava um museu desta importância e qualidade, com raridades e exemplares únicos.
                Logo à entrada vemos um pequeno órgão de tubos, pouco maior que uma escrivaninha. Está delicadamente decorado com os mais belos ornamentos, em branco-cinza e verde. Como o pequeno órgão, todos os instrumentos ainda funcionam, estão em perfeito estado considerando a sua idade, e estão tão admiravelmente ornamentados que é impossível não pensar no trabalho demorado, meticuloso, pormenorizado, isento de falhas e extremamente rigoroso que é exigido ao fabricante de tais obras de arte. Há instrumentos dos quatro cantos do mundo, e bastantes, cujos únicos exemplares estão expostos no nosso país, que nunca esteve na vanguarda da música erudita europeia. Dessa lista constam vários violinos Stradivarius, o violoncelo de Guilhermina Suggia, um clarinete dos inícios do século XVII, um serpentão, uma sacabuxa, uma trompa decorada com o brasão de armas da República Portuguesa, incrustada de jóias,  e uma valiosíssima colecção de 4 fagotes de épocas diferentes e um contrafagote. Mas também dois pianos de grandes nomes da música portuguesa, José Vianna da Mota e Luís de Freitas Branco e um piano do mundialmente famoso Franz Liszt. Fantástico o museu.
Depois do almoço seguimos directamente para o Teatro São Carlos, cujo público, como era de esperar, enchia toda a praça de frente do emblemático teatro nacional. Eu estava em pulgas: nunca tinha entrado no Teatro São Carlos como também nunca assistira a uma ópera. A ocasião era tão especial e formal que requeria indumentária igualmente especial e formal. Então eu e um amigo meu, David Nunes, arriscando-nos a ser multados por atentado ao pudor, havíamos previamente trocado de roupa no meio da rua ao lado do autocarro, antes de chegarmos ao teatro. Lá entrámos como deve ser, de camisa branca, blazer negro, gravata (amarela para mim, rosa para ele), calças de ganga, sapatilhas e óculos de sol rayban.
 Ao entrar apoderou-se de mim uma incrível sensação. Pensar em todas as figuras históricas que estiveram na mesma sala que eu, e possivelmente se sentaram no mesmo lugar, aguardando, como eu, ansiosamente o começo da obra… enquanto admirava os camarotes em redor de toda a sala, em madeira pintada de diversas cores e com bastante talha dourada, as cortinas, os enormes lustres que pendiam do tecto, que emoção!
Subitamente e finalmente começa a ópera L'OCCASIONE FA IL LADRO, de
Gioachino Rossini. Relata a história de três viajantes que se abrigam durante uma tempestade, Don Parmenione, Martino (o seu criado) e Alberto. Passada a tempestade, Alberto (que prometera casar com uma rapariga que nunca conhecera, leva a bagagem de Don Parmenione e quando Martino vai verificar a bagagem de seu amo (que é na realidade a bagagem de Alberto) encontra uma foto da noiva dele e os seus documentos e imediatamente Don Parmenione se apaixona por ela. Decide então fazer-se passar por Alberto, passando por muitas situações engraçadas, até chegar a um ponto em que se encontram os dois em casa do pai da noiva de Alberto dizendo, cada um, que é o verdadeiro. No fim, Don Parmenione casa-se com a noiva de Alberto e Alberto casa-se com a criada da sua ex-noiva, a quem ele realmente amava. Para surpresa minha, é extremamente parecido com a sensação que tenho ao ver um filme, à excepção da autenticidade e do facto de saber que aquilo está a ser feito em tempo real, diante dos meus olhos. Acabada a primeira ópera, fui curiosamente espreitar o fosso da orquestra que facilmente correspondeu às minhas expectativas. Infelizmente metade da orquestra também já tinha saído para gozar dos seus 15 minutos entre actuações.
                A segunda ópera, TROUBLE IN TAHITI, de Leonard Bernstein é muito mais moderna, dissonante e cujas melodias e harmonias soam, à primeira pouco agradáveis, contrastando com a época clássica, tonal de Rossini. É, muito resumidamente, a história de um dia de pessoas infelizes, presumivelmente baseada no casamento dos pais de Bernstein. É sobre duas personagens, marido (Sam) e mulher (Dinah) e a infelicidade que estão presentemente a viver no seu casamento. Apesar de a ópera acabar com a mulher a tricotar e o marido a ler o jornal, nota-se tensão na sala, pois a ópera acaba como começou, com os problemas matrimoniais do casal por resolver.
                Depois de um dia bem passado, demos umas voltas por Lisboa e regressámos a Coimbra.
                                                                          
 Francisco Lopes Soutinho Ventura Martins





Coimbra, 26 de Dezembro de 2010
Caro diário,
Uma das maiores surpresas da minha vida aconteceu este fim-de-semana.
Fui eu para Lisboa para um suposto congresso da minha irmã e, de repente, vi-me no aeroporto da Portela com dois bilhetes na mão para o Funchal. Estava estupefacta, completamente sem palavras. Parecia que tudo à minha volta tinha ficado congelado e eu estava ali em pé a processar a notícia.
Entretanto, eu e a minha irmã preparámo-nos para embarcar no avião que chegou atrasado para atingir ainda mais o meu já perturbado sistema nervoso. Lá entrámos no avião “ com o pé direito” disse eu, sempre supersticiosa. Na descolagem agarrei-me com as duas mãos ao banco com demasiada força, fechei os olhos e comecei a inspirar e expirar rapidamente. O meu coração ia aos pulos. Para meu grande embaraço ia toda a gente tranquila, a curtir a música no ipod, a ler, a escrever, a conversar, etc.
Umas horas depois, que me pareceram passar rápido demais, comecei a avistar a grande ilha. Do meu lado esquerdo o oceano calmo que se podia acompanhar até ao horizonte e do lado direito as colinas e vales da Madeira, com casas espalhadas por todo aquele espaço, não há praticamente nenhum local despovoado. Em cada casa existe um terreno cheio de bananeiras e cada uma carregada de bananas, ainda verdes.
Aterrámos no aeroporto da Madeira, que é totalmente o oposto do de Lisboa. Enquanto o da capital parece uma autêntica cidade – grande, confuso e com uma grande avalanche de gente – o da Madeira é mais sossegado, mais organizado – ou pelo menos assim parece -, não muito grande e menos barulhento.
Eu e a minha irmã fomos aproveitar o nosso fim-de-semana. Passámos, para além do Funchal, por Curral de Freiras, Ribeira Brava, Câmara de Lobos, entre outras. Fomos também a um local que tinha 500 metros de altura, cujo nome não me recordo, e ao olhar para baixo podíamos observar o mar a dar à costa e a sua ondulação. Que vista soberba. A sensação de liberdade que se fazia sentir era fenomenal. Éramos simples anões ali, perante a forte e imponente mãe natureza, seres fracos e insignificantes perante aquela dimensão. Um facto curioso é que existiam praias tanto de areia branca – claramente feitas pela mão do homem – como de areia preta – consequência da zona ser vulcânica.
Aprendi algumas tradições, diverti-me e provei pratos típicos. Foi uma experiência gratificante e com muitos frutos. Fiquei assim a conhecer mais uma encantadora parte do nosso país.
Até outro dia,
Mariana Oliveira







Figueira da Foz, 15 de Novembro de 2009
Querido diário de Bordo.
Este dia foi muito especial para mim. A minha mãe tinha ido falar com o chefe do Agrupamento 235 da Figueira da Foz para saber se eu podia entrar para os escuteiros marítimos. A resposta foi positiva, eles aceitaram a minha entrada.
A sede localiza-se perto dos Bombeiros e junto da Igreja Matriz de São Julião. Havia alguns carros estacionados e já lá estavam alguns escuteiros.
O chefe chegou pouco depois e foi ter comigo. Apresentou-se, cumprimentou-me e perguntou se eu era a Inês. Mandou-me entrar e apresentar-me aos outros escuteiros. Senti um pouco de vergonha e de insegurança, pois não conhecia ninguém. Estavam todos a olhar para mim! Lá começou o interrogatório, como te chamas, de que agrupamento vens, onde moras, parecia um batalhão de palavras curiosas, todos queriam saber quem eu era.
Eram todos muito simpáticos e muito divertidos...
Quando pensava que não conhecia ninguém, de repente entra pela sede a minha vizinha. Fiquei muito contente, afinal conhecia alguém.
 Começaram a planear as actividades e foram perguntando a minha opinião, o que me fez sentir logo integrada. Foi uma boa escolha que fiz, ter entrado para o Agrupamento 235 da Figueira da Foz, pois encontrei dois chefes espectaculares e uns colegas muito fixes.
Apesar dos termos escuteiros marítimos serem diferentes dos escuteiros terrestres, o escutismo é igual.
Tenho a certeza que vou crescer muito como pessoa.
Dar e partilhar são o lema dos escuteiros marítimos
Sempre mais Além!


Inês Rodrigues 10ºC 









Coimbra, 5 de Janeiro de 2010
Querido diário,
Escrevo-te com grande pesar, acabo de me despedir da minha avó. Não, ela não foi viajar, a morte como quem cumpre um dever, ceifou-lhe a vida e tirou-ma para sempre.
Fui ao Hospital de manhã, o edifício é alto e largo, com inúmeras janelinhas, à frente um majestoso parque de estacionamento enche-se por completo. Vestígios de uma natureza adormecida adornam o parque e também os vasos nos parapeitos, uma natureza que se encontra num estado de sonolência, enquanto tudo à sua volta gira. Lembro me da primeira vez que entrei num hospital, do barulho das sirenes a aproximarem-se, do movimento contínuo das enfermeiras, dos doentes e do cheiro que me causaram desconforto e receio este mundo novo que se abria para mim a uma velocidade incalculável. Apesar da rejeição inicial, foi talvez nesse momento que fui despertada para os mistérios desse lugar e tenha decidido que no futuro queria trabalhar ali, seria um dia médica.
Mal passei pela porta, o cheiro característico envolvia-me. Era uma mistura de produtos farmacêuticos, ar condicionado e um suave toque de algo forte...seria álcool ou amoníaco? Não sei definir bem.
Uma enfermeira acompanhou-me até à porta do quarto onde a minha avó estava internada. O momento a seguir ficou marcado na minha memória. Ouço um click e empurro suavemente a porta, entro, o quarto é frio, escuro e tenebroso, o olhar da minha avó prende-se na planície que observa pela janela. Tem um olhar cansado, um olhar de quem espera que algo aconteça. Está deitada, o corpo esconde-se debaixo dos cobertores, somente se vê a cabeça, o cabelo grisalho, outrora devidamente alinhado, encontra-se em perfeita desordem. A sua voz frágil rompe o silêncio, falámos…quer dizer, eu falava e ela escutava, murmurava, a sua voz ia-se tornando cada vez menos audível.
Uma enfermeira pede para que eu saia, para que a minha avó possa descansar. Dei-lhe um beijo e em lágrimas disse-lhe adeus. Ela sorria, acho que aceitou o seu destino, o destino de cada um de nós, melhor que toda a família. Penso que encontrou a paz, longe ficou a dor e o sofrimento.
Não me perdoo, devo ter deixado a porta entreaberta, a morte entrou.
Despeço -me com os mais tristes cumprimentos.

Nadejda







MAIS TEXTOS EM BREVE! :)

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ESCRITOR DO MÊS

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JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ SARAMAGO

"A meio deste mês de Outubro será publicado, em Portugal e no Brasil, Claraboia, o romance que José Saramago escreveu antes de entrar num tempo de silêncio que durou quase 20 anos, e que, de alguma maneira, teve a sua origem na falta de respeito com que o autor se sentiu tratado. José Saramago, com 30 anos recém cumpridos, entregou o que supunha vir a ser o seu segundo romance a um amigo, com relações editoriais, que se encarregou de levá-lo a uma editora portuguesa. Que nunca o editou, decisão que Saramago poderia aceitar, mas nunca daquela forma, durante meses e anos não lhe responderam e, para além disso, não devolveram o original. Foi assim até quarenta anos depois, quando recebeu a insólita notícia de que “numa mudança de instalações se havia encontrado um manuscrito e que estariam muito interessados em publicar”. Saramago agradeceu a oferta mas, disse, já não é o momento, já passaram muitos anos. E não quis ver publicada Claraboiaem vida, ainda que tenha deixado escrito que os que lhe sobrevivessem poderia fazer o que pensassem conveniente.

E o conveniente é conhecer o primeiro Saramago, o que já era um grande escritor ainda que os meios de comunicação não falassem dele e as editoras recusassem os seus originais. A partir de Outubro, todos os leitores em português terão a possibilidade de desfrutar deste presente, desta pequena e madura jóia. Outros idiomas terão de esperar, ainda que talvez na primavera os leitores em castelhano, catalão e italiano, possam ter oportunidade de ter este livro de Saramago nas mãos, para aumentar a sua bagagem, para disfrutar com a grande literatura." josesaramago.org

Excerto
«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
- Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
- Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
- Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
- Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.»