escritor do mês: José Saramago

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ser diferente


Exmo. Sr. Director-Geral da ONU


Venho por este meio apresentar o meu protesto contra o facto de ser tratada como um ser sem personalidade ou vontade própria, como um número no meio de tantos outros.
Somos todos iguais na aparência e somos identificados com números, como clones, sem direito a ter uma personalidade ou atitude próprias. Não há nada que nos distinga, apenas o número no código de barras. Protesto! Todos temos direito a sermos como queremos. Sei que há muita desigualdade no mundo, há fome em África e pessoas a comerem demasiado noutros locais do mundo, nomeadamente nos Estados Unidos. Sei também que essa desigualdade deve ser combatida, como é dito, “todos somos iguais e temos os mesmos direitos”. As grandes desigualdades devem ser combatidas, mas todos temos o direito de sermos diferentes, fazer algo diferente, pintar o cabelo de rosa choque, pintar uma unha de cada cor, usar roupas berrantes, ter um estilo próprio, pois são essas pequenas coisas que fazem a diferença, diferença essa que é saudável tanto para quem gosta de ser diferente, como para quem gosta de ver algo diferente.


Reclamo o meu direito a ser diferente, a ser gente, todos somos iguais e todos diferentes.


Aceite, V Ex.ª, o grito desta cidadã


Ana Isabel





Ex.mo Senhor Dr. Presidente da ONU




Venho por este meio reclamar a vossa Excelência o direito que tenho de ser “gente” e de ser tratada como tal.
No Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos consta que todos os seres humanos nascem livres e iguais, sem diferenças, eu confesso que no início até acreditei e sonhei, atingir a igualdade mundial, onde todos trabalhassem para um mundo melhor. Porém, neste momento confronto-me com um realidade estranha. A sociedade de consumo e a massificação roubaram-me o que eu tinha de melhor. E eu andava distraída com os objectos, tantos objectos, distraíram-me…e eu deixei…
De repente, somos todos iguais! Somos autênticos clones, que até direito a código de barras temos. A nossa única diferença é o último número do tal código de barras. Neste momento a liberdade de expressão é inexistente, já não temos vontade própria, todos fazem a mesma coisa, vergados, claro, porque actualmente somos escravos desta civilização.
Certa de que Vossa excelência tem um olhar atento às necessidades da população mundial, peço que realize o nosso desejo e nos conceda novamente a identidade e a liberdade individual e o direito a sermos pessoas.


Subscreve-se respeitosamente
Luana Silva






Aqui sou só mais um, um número, um triste, apesar de estar rodeado por uma multidão, sinto-me solitário e aqui estou, cabisbaixo…
O que penso? Penso sobre tudo o que existe, pois aqui é a única coisa que posso fazer, imaginar, pensar. Aqui nem tenho nome, não passo de um número x, não tenho roupa, nem cabelo.
Mas isto tem de mudar, tenho de me revoltar! Quero ter um nome e opinião, quero ser feliz e ter amigos, quero sorrir, amar, chorar e VIVER. Quero ter emoções.
Qual é o interesse de ser um número? Quais são as vantagens? A minha resposta é… NENHUMAS! Cansei! Quero sair daqui e ir para um país onde exista liberdade de expressão, mas principalmente onde haja pessoas.
Já me decidi, quero ser diferente dos outros, vou fugir, e trago comigo quem tiver capacidade de ser pessoa, quem se quiser limitar a ser um número, fica.
ADEUS!


Guilherme Veríssimo

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ESCRITOR DO MÊS

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JOSÉ SARAMAGO

JOSÉ SARAMAGO

"A meio deste mês de Outubro será publicado, em Portugal e no Brasil, Claraboia, o romance que José Saramago escreveu antes de entrar num tempo de silêncio que durou quase 20 anos, e que, de alguma maneira, teve a sua origem na falta de respeito com que o autor se sentiu tratado. José Saramago, com 30 anos recém cumpridos, entregou o que supunha vir a ser o seu segundo romance a um amigo, com relações editoriais, que se encarregou de levá-lo a uma editora portuguesa. Que nunca o editou, decisão que Saramago poderia aceitar, mas nunca daquela forma, durante meses e anos não lhe responderam e, para além disso, não devolveram o original. Foi assim até quarenta anos depois, quando recebeu a insólita notícia de que “numa mudança de instalações se havia encontrado um manuscrito e que estariam muito interessados em publicar”. Saramago agradeceu a oferta mas, disse, já não é o momento, já passaram muitos anos. E não quis ver publicada Claraboiaem vida, ainda que tenha deixado escrito que os que lhe sobrevivessem poderia fazer o que pensassem conveniente.

E o conveniente é conhecer o primeiro Saramago, o que já era um grande escritor ainda que os meios de comunicação não falassem dele e as editoras recusassem os seus originais. A partir de Outubro, todos os leitores em português terão a possibilidade de desfrutar deste presente, desta pequena e madura jóia. Outros idiomas terão de esperar, ainda que talvez na primavera os leitores em castelhano, catalão e italiano, possam ter oportunidade de ter este livro de Saramago nas mãos, para aumentar a sua bagagem, para disfrutar com a grande literatura." josesaramago.org

Excerto
«Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Num movimento mais lento de rotação, deitou as pernas para fora da cama. As coxas magras e as rótulas tornadas brancas pela fricção das calças que lhe desbastavam os pelos entristeciam e desolavam profundamente Silvestre. Orgulhava-se do seu tronco, sem dúvida, mas tinha raiva das pernas, tão enfezadas que nem pareciam pertencer-lhe.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
- Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
- Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
- Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
- Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.»